Por Iris Aguiar

O cenário pandêmico mundial demandou diversas medidas de prevenção e contenção da Covid-19, doença que afetou todo mercado comercial, incluindo o setor da música. 

A música, também conhecida como parte de um processo de socialização, abria espaço para promoção de  eventos que aconteciam de diversas maneiras antes da pandemia. Assim como outros setores, o musical  sofreu grandes impactos com todos os protocolos impostos como medidas sanitárias.

Apesar do consumo de produtos artísticos ainda ocorrer de maneira assídua, as adaptações que o setor sofreu com a pandemia inviabiliza um ganho de capital semelhante ou superior àquele recebido antes da pandemia, além de abalar as estruturas desse setor que se viu obrigado a modificar as maneiras de trabalhar e de gerar lucros.

O Grupo de Pesquisa em Sonoridades, Comunicação, Textualidades e Sociabilidade (Escutas), do Departamento de Comunicação Visual da UFMG (DCS-UFMG), através de um survey on line via Google Forms junto a 171 profissionais musicais (como cantores, compositores, instrumentistas, técnicos de som, DJs, produtores executivos, luthiers, entre outros), avaliou os impactos que a música sofreu em Belo Horizonte com a pandemia.

A primeira fase da pesquisa, realizada de agosto a outubro de 2020, foi publicada na revista acadêmica Suiça,  Frontiers in Sociology – Social Convergence in Times of Spatial Distancing: The Role of Music During the COVID-19 Pandemic.

Muitos artistas, nenhuma remuneração

Para muitos artistas, a pandemia causou grandes mudanças.  Mesmo criando e se adaptando, no entanto, o esforço não foi o suficiente para pagar as contas. O consumo de artes e produtos para o entretenimento ocorre de maneira acelerada entre o público, mas este consumo não é suficiente para gerar renda que  muitos artistas precisam  para sobreviver.

O estudo realizado pelo Escutas, revelou a dimensão do impacto econômico no setor musical em Belo Horizonte e confirma as diversas adaptações e reinvenções profissionais pelas quais os artistas tiveram que passar.

A pesquisa aponta que, dentre os entrevistados, 145 (84,8%) afirmaram viver da sua própria renda com música e, destes, 77 disseram que possuem um ou mais dependentes dessa renda. Estes números ajudam a compreender a situação do setor em BH, já que  apenas 5,8% dos entrevistados diziam ganhar mensalmente o equivalente a um salário mínimo com a música (R$ 1.045,00). Com a pandemia,  este número aumentou para quase a metade dos entrevistados (43,9%). 

A coordenadora projeto Escutas, Graziela Mello Vianna, destaca que o distanciamento social é fundamental para evitar a propagação do vírus e explica que a queda da renda do profissional na indústria musical se deve, principalmente, à falta das apresentações ao vivo, em bares, restaurantes e eventos como carnaval, cerimônias e casas de show, para evitar a formação de aglomerações.

“Belo Horizonte é, informalmente, conhecida como a capital nacional do Bares. Em 31 de outubro de 2019, a Unesco deu o título para Belo Horizonte como cidade criativa devido à gastronomia. Mas o que isso tem a ver com a música? Sabemos que em vários bares e restaurantes dão oportunidade para músicos, com shows ao vivo, e se cobra o couvert artístico, e assim o profissional da música garante a sua renda. Nesse momento de reabertura, ainda que os bares estejam abertos, o público ainda não pode se aglomerar para ouvir estas performances e a renda desses profissionais sempre dependeu da casa cheia, para ter uma quantidade considerável de couvert para sobreviver”, explica Graziela Mello.

A coordenadora informa que a pesquisa confirma que a renda obtida pelos musicistas nos bares é significativa para boa parte dos respondentes. Outras respostas indicam que esses lugares se destacam na questão  da visibilidade profissional e da relevância artística. 

O espaço virtual

Significativos, tais impactos atingem os músicos e os dependentes diretos da atividade. O resultado se mostra ainda mais preocupante em grupos socialmente mais vulneráveis, em que a adaptação ao ambiente online é ainda mais difícil e a monetização financeira para a maioria dos músicos é uma realidade ainda distante. 

“As redes sociais e canais virtuais se tornaram um palco para os artistas, um palco virtual. Esse palco carece de um conhecimento e equipamentos específicos, uma  internet de qualidade, um  bom microfone para captação e luz. São várias as dificuldades e, sem estabilidade financeira, vários dos profissionais não conseguiram se adequar, se capacitar ou adquirir os equipamentos necessários. Mesmo os que conseguiram se adaptar têm dificuldades em monetizar com essas apresentações nos palcos virtuais. Uma das atividades que melhor se adaptou foi o ensino musical, que ainda tem o valor cobrado reduzido”, declara Graziela Mello. 

Outra questão abordada no estudo é a precariedade que atinge de forma diferenciada, a depender de gênero, sexualidade, raça, etnia, geração e classe. Por exemplo, dentre os profissionais negros entrevistados, que representam  37,4% do total dos respondentes, metade ficou, tanto antes quanto depois da pandemia, na faixa de apenas um salário mínimo auferido mensalmente. 

Embora os profissionais brancos tenham sofrido uma redução significativa em sua renda, é visível a predominância de pessoas negras nas faixas de rendas mais baixas.  Há também uma presença consideravelmente menor dessas pessoas entre as rendas superiores, tanto no cenário anterior, quanto no contexto da pandemia.

“Esses dados analisados reiteram a necessidade de que as iniciativas públicas e privadas, de incentivo à cultura, implementem políticas de ações afirmativas inclusivas, como a reserva de vagas para pessoas negras e as medidas de inclusão social e racial durante a execução de projetos. Sem as ações de promoção de igualdade racial, os editais, os concursos culturais, os programas de fomento cultural e outras modalidades de incentivo à cultura podem perpetuar e intensificar as desigualdades e os privilégios raciais já existentes”, comenta Graziela Mello.

Chaya Vazquez, moradora do bairro Salgado Filho, na região oeste de BH, é co-fundadora do projeto Malta(Mulheres da América Latina Reunidas pelo Tambor), produtora e gestora musical, além de percussionista e regente de carnaval,conta que, nos últimos anos, se sustentava com os diversos trabalhos que fazia, desde engenharia  de áudio para cinema aos  trabalhos dentro de blocos de carnaval, teatro e bandas. 

Atualmente, a artista explica que suas áreas de atuação foram extremamente prejudicadas pelo cenário de isolamento e afirma que teve que mudar sua organização financeira para sobreviver, já que perdeu parte de sua renda.

“A realidade das apresentações presenciais agora é absolutamente inexistente, eu ainda não participei de nenhuma. Meu trabalho está sendo o que eu conseguir fazer com o apoio do pessoal que já estudava comigo e dar continuidade a algumas aulas online. Isso está me sustentando a pandemia inteira. Tive que contar com coisas como a internet muito boa, equipamentos que funcionam, energia e carisma extra-cotidiano para conseguir me sustentar”, revela Chaya.

Apesar de estar conseguindo se manter, Chaya diz não ser nada fácil e que é necessário ter dinheiro para conseguir manter as condições mínimas para dar aulas online, que ainda assim não são ideais.

“Minha maior dificuldade é sustentar essa situação, porque tenho que manter o espiritual e o emocional muito firme, ter uma continuidade, porque os alunos também passam por processos e o isolamento afetou o psicológico de todos. Entendi que meu trabalho passou a ser até um pouco terapêutico e tive muitos alunos que usaram desse recurso como forma de apoio emocional”, reflete a artista.

Na próxima etapa, a pesquisa do projeto Escutas, da UFMG, vai investigar questões específicas que emergiram das respostas da primeira fase, como o impacto das leis de incentivo ao setor cultural e o desafio da barreira tecnológica do virtual, seja para dar aula ou produzir e monetizar lives. O grupo também pretende investigar  o retorno lento e gradual, com a reabertura dos lugares de espetáculo, como bares e restaurantes.